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Em defesa da doação de recursos irrestritos: um ponto de vista e um movimento

Escrito por Nathalia Gonçalves, ex-coordenadora aqui no Pró, mas ainda uma grande amiga. Esse texto era para ser um post, mas virou um artigo. Nele, a Nath conta sobre a sua experiência com doação irrestrita durante a pandemia.
Doação de recursos irrestritos ong osc

O ano era 2020, uma pandemia desconhecida se alastrava e voltávamos para casa com um notebook debaixo do braço, achando que retornaríamos ao trabalho presencial dali a duas semanas, talvez três. Passaram-se meses.

Sem ainda entender qual seria o impacto da pandemia, criamos um comitê de crise, que nada mais era que um grupo de whatsapp da gestão, no qual apesar dos medos e incertezas, precisávamos tomar decisões rapidamente.

Em poucos dias desenhamos ações baseadas em um valor primordial da organização (Pró-Saber SP), o acolhimento: “vamos cuidar da equipe, ninguém será demitido e ficará desamparado; vamos cuidar dos alunos e das famílias dos alunos” e, rapidamente, também estávamos auxiliando todas as pessoas que precisavam, independentemente da relação com a organização. Recebíamos pedidos de apoio de dentro da comunidade e passamos a receber de fora também.

Não sabíamos se as pessoas continuariam doando, se as empresas continuariam doando, afinal, estávamos todos, independentemente do setor, imersos em incertezas sobre o rumo econômico do país e do mundo.

Remodelagem de programas e enfrentamento ao COVID-19

A equipe investiu esforços em adaptar os programas para o ambiente remoto, o que foi um enorme desafio. Como criar programas para crianças em fase de alfabetização? Como medir a frequência? Como promover o engajamento, acompanhar a aprendizagem e documentar todas as atividades remotamente?

Grande parte da energia foi direcionada em redesenhar tudo o que estava sendo feito para o contexto de isolamento social, de modo a continuarmos cumprindo os objetivos de todos os contratos com os financiadores e prestar contas com base em novos indicadores, adaptados para o ambiente remoto, ao mesmo tempo em que as famílias de nossos alunos estavam perdendo seus empregos, sua renda, sofrendo com o risco de contaminação e precisavam de acolhimento.

[Quando lembro de 2020 eu só consigo pensar naquele ditado “por não saber que era impossível, foi lá e fez”. Esse, pra mim, foi o mote de todo o terceiro setor daquele ano].

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Marcinha e eu nas ações de apoio que estruturamos durante a pandemia

Fizemos campanhas específicas, no qual todo recurso arrecadado foi alocado em nossas ações de alívio ao COVID-19 (inicialmente com doações de cestas básicas e depois passando para a doação e carregamento de cartões-alimentação, além da entrega mensal de uma cesta educativa com livros, com materiais e atividades desenhados e selecionados especificamente para o desenvolvimento das crianças).

Além disso, fizemos lives sobre os projetos com a participação das equipes dos programas e das famílias dos alunos (foram momentos muito divertidos e que me recordo com muito carinho!), contações de histórias mensais com contadores convidados, rodas de leitura e poesias, publicação de dezenas de vídeos enviados por escritores de livros infantis, entre outras ações.

Criamos diversas formas de comunicar o que estava sendo realizado, tanto para o público em geral, quanto para os doadores. Aprendemos a trabalhar de forma remota, editar vídeos, intensificar ações on-line e aprender toda a logística de como realizar o apoio presencialmente implementando todos os protocolos de saúde necessários.

Muito do que foi realizado só foi possível porque algumas fundações entenderam a importância da doação de recursos irrestritos (aqueles que podem ser alocados conforme a necessidade da organização, sem precisarem estar vinculados diretamente à um projeto específico).

A flexibilização dos aportes financeiros fez com que entregássemos mais do que imaginávamos. Conseguimos manter a equipe, cuidar de pessoas, implementar novas ações. Imagina se isso fosse implementado não somente em uma situação de crise?

Algumas das grandes dificuldades das OSCs é garantir o cuidado com colaboradores (salários justos, benefícios, treinamentos), promover inovações em seus programas, implementar o monitoramento de indicadores e avaliação de resultados, com financiamentos que colocam restrições no que é chamado de “overhead”. E, geralmente, o que é considerado overhead são as pessoas.

[submeti muitos projetos para editais de financiamento que limitavam bastante o que poderia ser o gasto por rubrica (muitas vezes com a possibilidade de apenas 30% do recurso total ser alocado em RH) , como se uma OSC de Educação, por exemplo, fosse feita só de lápis de cor e giz de cera].

Funding for real change

Ok, isso poderia ser apenas um P.O.V (point of view, sigla que os jovens usam e que eu me apropriei rs) de quem trabalhou no setor, mas isso foi longamente mapeado pelo movimento Funding for real change, que advoga pela transformação na forma pela qual as doações são feitas (defendendo a flexibilização dos recursos e doações plurianuais) e, mas interessante, é um movimento de financiadores para financiadores e não um apelo feito pelas OSCs.

[Acredito que haja uma mobilização maior dos financiadores quando são os próprios colegas que estão revisitando suas práticas].

O movimento está baseado na seguinte abordagem:

“Ao longo da pandemia, mais de 60% das fundações afrouxaram suas restrições e promoveram relatórios de doações mais leves para as organizações. Agora é a hora de normalizar essas boas práticas em todo o setor, pois subsídios plurianuais e flexíveis, ancorados na confiança, não são apenas o caminho certo para construir parcerias com donatários, mas também uma maneira inteligente dos doadores criarem mais impacto, aumentarem a equidade e fortalecerem as organizações a longo prazo, como mostram os estudos”

O FFRC preparou um material com dicas práticas de como os financiadores podem repensar suas ações e listaram cinco aceleradores e cinco barreiras para as tranformações no modo de doar.

Eles listam que os 5 aceleradores para a transformação no modo como se dá o investimento social são:

  • Clareza nos valores que orientam as fundações/empresas: é o momento das fundações reverem suas teorias de mudança e mobilizarem suas equipes e conselhos a a trabalharem conforme a sua proposta de impacto;
  • Feedback das organizações apoiadas: financiadores que solicitam feedback das organizações dizem que as respostas que recebem fortalecem a defesa da mudança das práticas de doação junto a seus conselhos e equipe. Feedback constante pode fazer com que as fundações entendam a importância das relações de confiança e das doações plurianuais;
  • Vestir as lentes de equidade: quando financiadores se comprometem a redistribuir poder e recursos e abordar questões históricas de subfinanciamento de lideranças historicamente marginalizadas (por raça,etnia, casta ou gênero), eles encontram uma necessidade de oferecer financiamento plurianual e flexível para preencher lacunas de talentos, fortalecer organizações subfinanciadas e constroem um trajeto financeiro de longo prazo para a reparação de injustiças sociais seculares;
  • Crises como um chamado para o engajamento: como mencionado neste artigo, crises como a COVID-19, a luta antirracista que foi intensificada após o assassinato de George Floyd, entre outras ameaças aos direitos humanos, criaram uma plataforma para a transformação, questionando os antigos protocolos de financimaneto e promovendo a tranformação ( aumento de doações, flexibilidade na alocação de recursos, etc.), a fim de criar resiliência para o o avanço da justiça social;
  • Influência mútua entre atores do ecossistema de investimento social: compromissos públicos dos financiadores com boas práticas, como o Giving Pledge, colaborações entre financiadores, fundos comunitários participativos e e redes como o Black Lives Matter exercem influência sobre transformações nos modos de doar. Enquanto isso, financiadores individuais inovadores, como MacKenzie Scott, influenciam os padrões de grupos de financiadores.

O material pode ser encontrado no site da iniciativa e é um ótimo benchmarking para que o mesmo tipo de discussão seja pautado no Brasil.

Como isso reverbera em você?

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