Fui uma criança criada pela minha avó. Ela foi minha chefe de lar, algo muito comum no Brasil. O Censo de 2022 (IBGE) mostra que, em várias regiões do país, mais de 50% dos lares são chefiados por mulheres. A minha história se soma a essas estatísticas. Nasci e cresci em Samambaia Sul, uma periferia do Distrito Federal, no Centro-Oeste do país.
Minhas memórias de infância são atravessadas pela brincadeira. Lembro das ruas planas e calmas onde eu podia correr, andar de bicicleta e deixar a imaginação solta. Tudo que a gente precisava era espaço e criatividade, o resto era diversão.
Com minhas amigas, brincava de profissões: a cada dia eu era uma coisa: secretária, professora, advogada. Também fazia comidinha com folhas e flores, bolinhos de terra com água, e balançava na rede até o mais alto possível, sentindo aquela adrenalina gostosa. Guardo com muito carinho essas lembranças: uma infância fértil de imaginação e alegria.
Nos fins de semana, minha avó me levava, com algumas amigas, para o que eu chamava de “roça”, um lote no interior de Goiás, na região da Serra Dourada. Era uma área montanhosa, com rios e poucas casas, onde ela tinha uma casinha de taipa, fresquinha e simples.
Lá, acordava cedo para colher ingá do pé, aquele fruto docinho que eu amava e os soinhos também. A manhã começava fria, e às 9h o sol já era quente, como é típico do cerrado. Subia em árvores, especialmente num pé de seriguela que parecia ter se moldado para nossas brincadeiras. Ali, eu e minha amiga de infância, Amanda Pereira, conversávamos e comíamos frutas do pé. Aquilo, hoje percebo, era pura riqueza.

À tarde, íamos ao rio. Eu sentia um pouco de medo, mas também um grande amor por aquele lugar. O rio era estreito, com trechos fundos e outros rasos. Ficava ali, no raso, me refrescando com a água gelada. Às vezes pescava piabinhas: aprendia a pegar minhoca da terra úmida, colocar no anzol e fazer silêncio, porque senão o peixe não vinha. Era um tempo de escuta: do som do rio, dos pássaros, da terra e da minha própria respiração.
Também tenho uma memória muito viva com meu avô adotivo, de quando plantávamos milho e feijão. Ele abria os buracos na terra com a enxada, e eu ia depositando as sementes com cuidado. Ali aprendi que a terra tem seu tempo, e que tudo floresce na hora certa. Era bom demais colher o milho, cozinhar e fazer curau. Esses momentos me ensinaram sobre paciência, conexão e alimento com afeto.
Havia também um grande campo de terra na casa da vizinha, dona Prícia, e do seu Zé, um casal de idosos que virou parte da minha família afetiva. Na chácara deles, eu comia romã, manga, pitanga e tantos outros frutos. Havia um balanço no pé de manga onde eu passava as tardes com os netos deles. Era pura alegria.
Brincava de futebol, corria, e tinha um lugar favorito: uma mesa de concreto onde, com meu amigo Samuel Almeida, moldávamos bolinhos de terra. Também havia pneus cravados na terra que formavam um caminho, a brincadeira era andar sobre eles sem cair. Era divertido demais.
No meio das plantas, gostava de tocar a mimosa pudica, que se fechava com o toque. Aquilo era mágico.
Escrevo tudo isso com saudade. Hoje, seu Zé já se foi, e dona Prícia não mora mais na chácara. Minha avó ainda mantém uma casa por lá, e sinto falta de tudo: do cheiro da terra, das frutas colhidas no pé, da liberdade de brincar, correr e imaginar. Fui uma criança que teve direito à infância — e isso não tem preço.
Hoje moro em São Paulo, em Paraisópolis, uma das maiores favelas da capital. Me pego olhando para a escassez de espaços destinados às nossas crianças: o brincar acontece em vielas úmidas, apertadas, sem luz do sol, sem árvores ou plantas. Muitas passam o dia em casa, diante das telas, porque é o que há para elas. A infância aqui não é pensada por todos como um compromisso coletivo. Vivemos em um território que não garante o básico para que as crianças possam simplesmente ser crianças e ainda há o medo constante de deixá-las nas ruas, por conta da atuação de agentes de segurança que deveriam garantir a nossa proteção, mas a realidade não é assim.
Trabalho no Pró-Saber SP, como comunicadora e moradora da comunidade, às vezes saio da sala do institucional e vou para a biblioteca, meu espaço favorito. Gosto de ouvir as crianças refletindo, criando, pensando em peças de teatro, questionando o mundo. Isso me enche os olhos. Dias atrás, minha filha e alguns colegas apresentaram uma peça. Para muitas crianças, foi a primeira vez atuando, e elas mandaram tão bem! Era visível a felicidade de poder interpretar, de ser artista, de se expressar.
É esse o caminho que o Pró proporciona para nossas crianças e jovens: um lugar que reconhece o brincar como direito e potência. O mesmo brincar que foi essencial para a pequena Glória e que continua sendo para tantas outras infâncias que passam por aqui.
Tudo o que eu queria era que todas as crianças tivessem o que eu tive: o direito à imaginação, o direito à terra, o direito a alimentos do pé e de graça, porque vêm da terra, ela que nos dá. O direito a uma infância saudável, longe da violência.
Esse é um dos meus sonhos para a infância, em especial para a infância negra e periférica: um lugar seguro, um pirão de avó, uma existência calma e uma comunidade que cuida das suas crianças.
Com meu coração, agradeço aos adultos que cuidaram de mim: ao seu Zé, que se foi, mas que sempre me acolheu; à dona Prícia, que fazia um quiabo muito gostoso; à minha avó, por ter me cuidado quando eu estava vulnerável; ao meu avô, com quem aprendi o tempo da terra; e ao rio e à natureza que eu sou — que me abraçaram em suas águas doces. Obrigada! <3