Alfabetização pós-pandemia: quem está na ponta fazendo acontecer?

Apesar dos desafios impostos pela pandemia, projetos sociais e educadores populares têm sido essenciais para resgatar crianças do apagão educacional. É fundamental que a educação pública se inspire nessas práticas para transformar a realidade das crianças e adolescentes.
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A metodologia do Pró deveria ser adotada nas escolas. Como comunicadora na organização, vejo diariamente o impacto que o Pró tem na vida das crianças. Minha filha participa das atividades e tem sido acompanhada em seu desenvolvimento. Às tardes, ela se envolve em leituras coletivas, produz poesias sozinha, lê em público e é incentivada a pegar livros emprestados, a brincar, a explorar a leitura de maneira lúdica e prazerosa.

É no dia a dia, sentada trabalhando, que percebo o senso crítico das crianças, o interesse delas, a vontade de aprender. Acompanhar de perto diferentes programas, desde o Pró Ler & Brincar até o Ciranda Literária, me fez entender como essas iniciativas são essenciais para resgatar muitas crianças do apagão educacional pós-pandemia. Esses programas precisam continuar sendo financiados e incentivados, porque fazem a diferença onde o ensino formal não tem conseguido alcançar.

Os anos da pandemia foram desesperadores em muitos sentidos – vidas perdidas, um sistema de saúde em colapso, uma catástrofe global. Os danos foram profundos: psicológicos, financeiros, emocionais. E, entre tantas perdas, a educação também sofreu um impacto severo, especialmente para crianças que estavam no início da alfabetização, como minha filha.

Em 2020, quando ela começava esse processo, minha maior preocupação era entender como o sistema público de ensino acolheria esses alunos que, de repente, se viram isolados em casa, sem a estrutura adequada para aprender a ler, escrever, interpretar o mundo e sociabilizar. Alfabetizar-se não é apenas decifrar palavras, mas desenvolver autonomia de pensamento, compreender a realidade e interagir com os outros – algo essencial para o crescimento de qualquer criança.

No primeiro momento, recebemos um tablet com acesso à internet. As atividades eram postadas no Google Drive e precisavam ser respondidas nos livros, fotografadas e enviadas de volta. Para mim, foi relativamente prático, pois já dominava a ferramenta. No entanto, percebi que muitas famílias ao meu redor não tiveram a mesma facilidade. Muitos pais e mães não sabiam mexer na plataforma, não tinham tempo para acompanhar as crianças, pois continuavam trabalhando presencialmente – especialmente as mães solo, empregadas domésticas, mulheres que conheci por meio das amizades da minha filha e de muita escuta enquanto comunicadora.

O problema começou aí: pais sem acesso ao conhecimento necessário para ajudar os filhos, exaustos pelo trabalho e pelo medo da pandemia, enquanto, em muitos lugares, a internet sequer funcionava. A sensação era de que o ensino remoto foi uma solução imposta sem considerar a realidade das famílias mais vulneráveis. As consequências disso? Hoje, vemos crianças de 10, 11 anos – e até mais velhas – que ainda não foram alfabetizadas. Um problema estrutural, marcado por desigualdades territoriais, raciais e de classe social.

Em quarentena, fiz o possível. Me virei como pude, tentando ensinar algumas atividades. E como foi cansativo! Alfabetizar exige tempo, paciência, dedicação – e, para muitas mulheres, soma-se a uma jornada dupla ou tripla de trabalho. Aos poucos, minha filha foi avançando, ainda que com dificuldades na leitura. Mas precisei pagar por uma professora particular. Somente aos 8 anos ela foi, de fato, alfabetizada.

Com o fim da pandemia, ficou um questionamento em minha mente: quais são as ações para recuperar os anos perdidos de tantos alunos? Como correspondente da Agência Mural, representando Paraisópolis, fui atrás dessas respostas.

 Escrevi uma reportagem mostrando como as crianças enfrentam dificuldades após a pandemia. Com os dados que tive acesso, foi possível ver que somente 37,9% das crianças da rede municipal estão alfabetizadas na idade certa.

 Esse dado escancara um problema profundo: a educação infantil, especialmente nas periferias, segue marcada por desigualdades e desafios estruturais. O baixo índice de alfabetização reflete não apenas o impacto da pandemia, mas também a falta de políticas eficazes para garantir a recuperação da aprendizagem. Sem ações concretas e um olhar mais atento para essas crianças, corremos o risco de perpetuar um ciclo de exclusão e comprometer o futuro de uma geração.

Para além do meu questionamento, pude observar na minha viela crianças mais velhas que minha filha que ainda não estavam alfabetizadas, o que gera constrangimento, vergonha e até mesmo isolamento dos colegas na escola. Conversando com essas crianças e suas mães, percebi que a história se repete dentro de muitas casas: mães solo, cansadas, e tantas que sequer foram informadas sobre a alfabetização dos filhos. As que foram informadas questionam o método e o curto tempo oferecido para recuperar um atraso que impactará toda a vida dessas crianças e adolescentes.

Por isso, reforço: o sistema público de educação precisa olhar para quem está nas margens. Projetos sociais, ONGs e educadores populares têm feito um trabalho essencial, preenchendo lacunas que deveriam ser responsabilidade do Estado. Mas não basta reconhecer esses esforços – é preciso aprender com eles.

A metodologia do Pró, por exemplo, demonstra que uma educação transformadora passa pela escuta e pela troca com a comunidade. Diferente do ensino tradicional, que muitas vezes impõe conteúdos sem diálogo, o Pró valoriza o território, incentiva a leitura coletiva e a imaginação, e traz abordagens diversas, como a contação de histórias e as batalhas de slam, que estimulam a escrita e a criatividade. Esse modelo mostra que há diferentes formas de aprender e que a escola pública precisa abraçar essa diversidade.

Se queremos garantir que nenhuma criança fique para trás, é urgente investir em práticas pedagógicas mais inclusivas e inovadoras, além de fortalecer quem está dentro das salas de aula: os professores. Só assim a educação pública poderá, de fato, cumprir seu papel de transformação social.

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